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Punitivismo à brasileira

como o desejo de punir molda nossas prisões?

Antes, voltemos à história

Afinal, como surgiram as prisões?

Você já parou para pensar em como surgiram as prisões? Essas instituições nem sempre funcionaram como conhecemos hoje, e o conceito de punição evoluiu significativamente ao longo da história. Aliás, a noção de encarceramento como uma penalidade é relativamente recente e nasceu apenas após o século XVIII.

Como as penas funcionavam antes disso? 

Até a Idade Média, a privação de liberdade não era um fim, mas um meio de manter o acusado sob controle enquanto aguardava a execução de sentenças mais severas, como a degola, mutilação e até a morte na guilhotina. Esse período é chamado de “suplício” e foi profundamente analisada pelo filósofo Michel Foucault em sua obra "Vigiar e Punir".  

O suplício não era apenas uma forma de punição, mas tinha como forte característica o fato de ser também um ritual público onde o corpo do condenado era usado para demonstrar o poder do soberano e desencorajar outros a cometerem crimes. Baseado em uma lógica punitivista, em que se entende a punição como a principal forma de lidar com a criminalidade, o suplício buscava infligir sofrimento como forma de vingança. 

Como o suplício perde espaço? 

Com o declínio da monarquia, o advento do Iluminismo e o surgimento do abolicionismo, essas práticas passaram a ser vistas como barbáries incompatíveis com novos valores humanitários. Movimentos de transformação social, política e econômica trouxeram novas concepções de justiça.

Pensadores como Cesare Beccaria argumentaram contra o punitivismo cruel, advogando por um sistema de justiça mais racional e humanitário, que priorizasse a prevenção do crime e a reabilitação do criminoso, em vez de simplesmente punir.

O punitivismo foi para onde? 

Antes, é preciso entender o que é o punitivismo. O termo é usado para referir-se a uma abordagem de justiça criminal que enfatiza a punição como a principal resposta ao crime, muitas vezes sem consideração suficiente pela reabilitação ou pelas causas sociais ocultas que levaram ao comportamento criminoso. Historicamente associado ao suplício, o punitivismo persiste de outras formas nos dias atuais.

Do punitivismo deriva o "populismo penal", uma abordagem política que explora o medo e as preocupações da população para ganhar apoio, adotando políticas simplistas, como penas mais duras e leis rigorosas, como solução para a criminalidade.

Movida pelo medo, a sociedade clama por medidas duras e inflexíveis, acreditando que elas servirão de exemplo para o infrator e para os demais. Esse anseio se intensifica em tempos de incerteza política e social, entretanto a insegurança social é sempre o denominador comum. Assim, constrói-se o mito do punitivismo como solução eficaz à criminalidade, presente em países como Estados Unidos, Brasil e China, que compõem o top 3 em população carcerária.

Fonte: World Prison Brief

Quem alimenta o populismo penal? 

Nas mãos de políticos, da mídia e do Estado, o populismo penal ganha forma e força. John B.Thompson, Marshall McLuhan e Michel Foucault já alertavam sobre o papel fundamental da mídia na construção de nossas percepções da realidade. E o que ela nos conta sobre a realidade carcerária, especialmente no Brasil? 

Com um apelo ao sensacionalismo, a imprensa tradicional e privada frequentemente transforma crimes em espetáculos, alimentando cada vez mais o medo na população. Essa abordagem simplificada, que divide o mundo em "bons" e "maus", ignora as causas profundas da criminalidade e contribui para a criação de um inimigo comum: o criminoso. Esse fenômeno tem nome: populismo penal midiático.  

Quais as consequências práticas dessa dinâmica? Giulia Muffato Salomão, advogada criminalista e especialista em Direito Penal, responde essa pergunta.  

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Direito penal

Essa é a área do direito focada nas leis que determinam o que constitui um crime e como os infratores devem ser punidos. Na atualidade, essa determinação é diretamente influenciada pelo apelo midiático e seus efeitos sociais. 

Uma questão estatal e política

Políticos populistas, ao surfarem na onda de indignação popular, promovem políticas punitivistas, prometendo o fim da criminalidade com medidas, cada vez mais, duras em uma "guerra contra o crime". O Estado, por sua vez, utiliza a punição como forma de controle, mascarando problemas sociais mais profundos. A sensação de insegurança justifica, assim, políticas repressivas que, muitas vezes, violam os direitos humanos e levam ao hiper encarceramento, gerando condições insalubres e violência nas prisões.

Consequências do populismo penal

Uma das consequências mais visíveis do populismo penal no Brasil é o crescimento descontrolado da população carcerária. O endurecimento das leis e a aplicação excessiva de penas longas contribuem para a superlotação das prisões, sem que isso promova a ressocialização ou reduza significativamente os índices de criminalidade.

Além disso, o impacto dessas políticas recai desproporcionalmente sobre negros, pobres e jovens de periferias, como já mostrado na reportagem. O populismo penal reforça estereótipos que associam criminalidade a esses grupos, marginalizando ainda mais quem já vive em condições de precarização na sociedade.

O apelo punitivista também sobrecarrega o sistema de justiça brasileiro com o aumento de processos e prisões preventivas. Até o primeiro semestre de 2024, quase 30% do sistema prisional era composto por pessoas que ainda não tinham sido julgadas e condenadas. Por isso, para a advogada Giulia Muffato Salomão, a problemática do encarceramento em massa no país, necessariamente perpassa a problemática dos presos preventivos, que se destaca como um dos fatores cruciais para o hiper encarceramento nas prisões brasileiras.

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O uso excessivo da prisão preventiva, conforme mencionado pela advogada, levanta questionamentos sobre a justiça processual e a necessidade de se repensar essa prática no sistema jurídico brasileiro. Ao manter uma grande quantidade de pessoas presas provisoriamente, o sistema penal pode acabar punindo pessoas antes mesmo de sua culpa ser estabelecida, além de evidenciar, mais uma vez, um padrão de perfilamento racial e social.

Reportagem: Quando falamos sobre prisão preventiva e presos provisórios, é possível identificar um recorte racial? Há um perfil comum entre as pessoas que são alvo dessa medida?


Giulia: “Eu acredito que sim. Primeiro, todas as pessoas que passam por um processo penal ou procedimento criminal já enfrentam um certo perfilamento, como comentei, baseado na teoria dos aparatos do Estado, que identificam o inimigo do direito penal. Qualquer pessoa que entra no sistema penal, seja acusado ou investigado, já carrega o perfil de "inimigo do direito penal".


Ou seja, no Brasil, o inimigo é, muitas vezes, a pessoa preta, a pessoa marginalizada. A prisão preventiva, nesse contexto, retira essa pessoa da sociedade com a justificativa de que ela não tem condições de estar em liberdade porque violou a ordem pública, a ordem econômica ou algum outro requisito previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal. Assim, qualquer pessoa que entra no sistema carrega essa questão de ser o inimigo do direito penal, reforçando o perfilamento que atinge, em grande parte, os grupos mais vulneráveis”

À margem da morte
Foto de Bich Tran httpswww.pexels.compt-brfotofotografia-em-close-do-portao-branco-com-cadeado-cor-de-latao-846288.jpg

Reprodução | Pexels

A superlotação e as condições precarizadas nas prisões brasileiras não são novidade. No entanto, o populismo penal, com sua ênfase em penas duras e repressão, aprofunda essa crise. A população carcerária aumentou exponencialmente nas últimas duas décadas, mas a estrutura prisional não acompanhou, levando à superlotação crônica e à violação dos direitos dos presos. O número de detentos no país hoje equivale a encher o estádio do Maracanã onze vezes. 

Infraestrutura inadequada e falta de investimento em programas eficazes de reabilitação colocam a ressocialização como um ideal distante. O mesmo Brasil que grita pelo aprisionamento cala-se diante de um outro clamor silenciado: soluções para uma tragédia escancarada. 

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“Não existe prisão perpétua no Brasil, uma hora ou outra, a pessoa privada de liberdade vai retornar.”

Como a pessoa retornará?

 

Repensar o enfoque punitivista e investir em políticas que priorizem a recuperação e reintegração dos presos é uma necessidade urgente por inúmeros motivos. Garantir que pessoas apenados voltem à sociedade com ferramentas que lhes permitam um novo começo, baseados na valorização da vida e em uma visão de futuro diferente daquela que os levou ao encarceramento, é antes de tudo um ganho social.

Contudo, é preciso olhar e garantir um sistema de justiça que não perpetue a injustiça, especialmente, em casos de prisões arbitrárias, penas desiguais e discriminação racial. O sistema penal, como está estruturado atualmente, é um reflexo das desigualdades sociais, em que, no lugar de corrigi-las, agrava problemas históricos e reforça preconceitos.

O combate à criminalidade exige mais do que punição. Carece da compreensão de que as raízes da violência estão na desigualdade social, na falta de oportunidades e no desrespeito aos direitos humanos. Enquanto o populismo penal continuar ditando as políticas de segurança, o ciclo de exclusão e encarceramento em massa seguirá perpetuando um sistema falido e injusto que coloca em jogo planos, sonhos e futuros.

Quando uma pessoa se adapta ao sistema carcerário, quer dizer que ela é imprópria para viver na sociedade, porque ela se adaptou a um ambiente que tirou toda sua individualidade, criatividade e habilidade de agir como um ser humano racional”.

- Padre Valdir Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária

Contudo, embora o sistema prisional convencional continue a ser palco de injustiças e violência, existem alternativas que tentam mudar essa realidade. As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs) mostram exemplos para humanizar o cumprimento da pena e promover uma alternativa para a ressocialização. Na próxima página, conheça mais sobre esse método inovador e como ele vem transformando vidas e reduzindo a reincidência criminal no Brasil.

© Copyright 2024 por Maiara Sousa. 

Ilustrações por Alissa Miki.

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