

Como o racismo conduziu uma jovem inocente a prisão?
19 anos de idade é uma fase decisiva para grande parte dos jovens. Escolher uma carreira profissional, ingressar na faculdade e ir em busca dos sonhos - objetivos como esses costumam ser traçados nessa fase.
Para Barbara Querino não era diferente. Nascida e criada em Cidade Ademar, uma região periferizada da zonal sul de São Paulo, Barbara é bailarina e professora de danças urbanas com foco no dancehall - uma expressão cultural jamaicana. Atualmente, ela se dedica também à escrita e ao empreendedorismo.
Além da arte, existe outra marca na sua história. Aos 19 anos de idade, a artista foi acusada e presa injustamente de ter participado de dois assaltos. Mesmo sem provas suficientes, ela foi condenada em primeira instância a uma sentença inicial de cinco anos e quatro meses, na penitenciária de Franco da Rocha, em São Paulo.

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O caso
Foi justamente enquanto ascendia profissional e academicamente que sua vida tomou um rumo inesperado. No dia 4 de novembro de 2017, enquanto Barbara saia para o cursinho pré-vestibular, o irmão e um primo eram abordados na frente de casa pela Polícia Militar sob uma investigação de roubo de automóveis.
Mesmo sem relação com o crime, Barbara, a cunhada e uma vizinha que estavam na rua no momento, foram encaminhadas até a delegacia onde foram fotografadas. O que Barbara não esperava é que, uma semana depois, as fotos seriam vazadas em grupos de WhatsApp, páginas de Facebook e noticiários policiais. Junto, mensagens que a acusavam de fazer parte de uma quadrilha que atuava na zona sul de São Paulo.
“Na época, eu fiquei muito preocupada, porque eu já trabalhava, fazia clipes, eventos. Se isso caísse nas mãos de algum contratante, possivelmente, eu perderia meu trabalho (...) Eu era da quebrada, da periferia, não entendia muito dos meus direitos e que eu deveria ter colocado um advogado de primeira instância”.
Dois meses após o incidente em frente à sua casa, Barbara foi detida sob a acusação de envolvimento em dois assaltos à mão armada ocorridos na zona sul de São Paulo, em 10 e 26 de setembro de 2017. O relato inicial da vítima de um dos roubos indicava que apenas homens participaram do crime. No entanto, após o vazamento das fotos, surgiu a acusação de que uma mulher também estava envolvida. Barbara foi identificada por meio de uma foto porquê sua cor de pele e o seu cabelo crespo eram considerados similares ao da suposta assaltante.
O processo de reconhecimento facial, contudo, não seguiu as diretrizes do Código de Processo Penal, que exige a apresentação de suspeitos em conjunto com outros de características semelhantes para evitar identificações precipitadas. Barbara ainda apresentou provas e testemunhas que demonstravam que ela estava trabalhando no Guarujá, litoral de São Paulo, no mesmo dia e horário do ocorrido.
Além das testemunhas como álibi, o irmão - acusado no mesmo processo e réu confesso - negou em depoimento o envolvimento da irmã nos crimes. Apesar das alegações, o reconhecimento da vítima prevaleceu e Barbara foi condenada a cinco anos e quatro meses de reclusão.
Enquanto ainda estava presa, Barbara foi absolvida em um dos processos, mas só foi completamente inocentada em maio de 2020, quando um desembargador reconheceu que não havia provas suficientes para a condenação.
Cor, classe e condenação

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O desfecho tardio veio depois de diversas falhas na análise processual. Barbara relata que foi ouvida apenas uma vez ao longo de todo o processo, além de ter enfrentado múltiplas audiências adiadas devido à ausência dos acusadores. A negligência na revisão das provas e o atraso nas audiências são algumas das diversas falhas do Estado que prolongaram indevidamente o seu encarceramento.
O caso da multiartista também ressalta as disparidades raciais no sistema prisional brasileiro que faz com que negros e pardos, frequentemente de comunidades de baixa renda, enfrentem um tratamento judicial desigual e severo. Outros casos, como o de Rafael Braga, que foi preso por portar produtos de limpeza durante protestos, ilustram a severidade desproporcional das punições aplicadas a pessoas negras.
Além da maior severidade, o racismo é um dos principais motivos para o encarceramento injusto de indivíduos negros. O reconhecimento equivocado de suspeitos ainda leva homens e mulheres pretas à prisão, mesmo sem antecedentes criminais ou outras provas que justifiquem o seu aprisionamento. Infelizmente, o Brasil coleciona outras inúmeras histórias similares à de Bárbara.
“São muitas arbitrariedades que acontecem ao longo do processo. A gente não sabe como a foto chega lá. Os reconhecimentos são feitos por parte da polícia de maneira totalmente irregular. Mesmo assim, o Ministério Público pede a prisão ou a condenação. E o magistrado vai corroborando essas decisões.”
- Juliana Sanches, diretora Jurídica do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), em reportagem cedida ao veículo de notícias Agência Brasil.
Do ponto de vista teórico, essas práticas discriminatórias refletem a influência de uma teoria controvérsia, formulada pelo jurista alemão Günther Jakobs - a "Teoria do Inimigo do Direito Penal", que propõe a existência de um tratamento diferenciado para os considerados "heróis" e "inimigos". No Brasil, a concepção de quem é o "inimigo" se manifesta de forma não oficial, porém evidente, com uma vigilância e repressão policial mais rigorosas nas comunidades pobres, onde predominam negros e pardos - indivíduos frequentemente estigmatizados como os "inimigos" da sociedade.
Sobrevivendo no cárcere
A injustiça racial se estende profundamente ao cotidiano prisional, onde as condições desumanas se tornam o palco diário para aqueles que, estigmatizados como "inimigos", enfrentam um ambiente ainda mais hostil.
Em 2022, pessoas negras e pardas compunham 68,2% da população carcerária, evidenciando uma realidade em que discutir as condições dos presídios e a violação dos direitos humanos desses indivíduos é, em grande medida, discutir a realidade da população negra. Ao negar condições de vida dignas aos encarcerados, o Estado brasileiro, em particular, nega esses direitos a homens e mulheres negros, que são desproporcionalmente representados no sistema prisional devido a um conjunto de fatores históricos, sociais e raciais.
No cárcere, Barbara viveu uma rotina marcada por uma luta diária pela sobrevivência. A alimentação, muitas vezes, insuficiente, oscilava entre arroz, feijão e o que ela descreve como "chorume" de linguiça. O café da manhã consistia em pão, leite em um saquinho e café preto. Como a última refeição era fornecida às 16hrs, a estratégia para evitar dormir com fome era guardar o pão fornecido à tarde.
“Às vezes, tinha dias que eu não tomava café para guardar o pão para a noite, que aí à noite eu comia dois pães para dormir. Então, a gente fazia esse revezamento, porque é isso, se você não fizesse, você ia ficar, à noite você ia ficar com fome e, cara, é horrível dormir com fome. É uma maneira de sobrevivência, né, que você vai tendo.”

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"Tinha dias que a comida vinha estragada, e aí você escolhia se comia ou se não comia."
A alimentação não era o único desafio enfrentado. Ao chegar na prisão, cada detenta recebe um kit de higiene básico — dois sabonetes, uma pequena pasta de dente e dois pacotes de absorventes com oito unidades. A reposição desses itens ocorria apenas a cada três ou quatro meses.
No Brasil, a Lei de Execução Penal (LEP) define um conjunto de direitos e garantias para os indivíduos privados de liberdade, como integridade física e moral dos detentos, além de garantir o acesso a serviços básicos como saúde, alimentação adequada, educação, trabalho e higiene. Apesar desses direitos previstos em lei, na prática, nada é garantia.
Para as mulheres, a prisão impõe desafios adicionais. As instalações não são adequadas para as necessidades femininas, especialmente em termos de higiene e cuidados menstruais. "É muito complicado, porque a estrutura não foi criada para mulheres", explica Bárbara. Os banhos gelados independentemente da fase do ciclo, os absorventes fornecidos de forma insuficiente e a falta de medicamentos adequados para dor, fazem com que questões biológicas tornem-se uma punição extra.
Em meio a escassez de recursos no cárcere, a higiene básica torna-se um desafio significativo para as detentas, que, muitas vezes, dependem do suporte externo de familiares. Entretanto, dada a vulnerabilidade socioeconômica de muitos das presas e presos, o auxílio familiar é frequentemente inacessível, agravado pela escassez de recursos ou pelo abandono parental que afeta desproporcionalmente as mulheres encarceradas.
Na ausência de apoio externo, os laços criados internamente são o recurso encontrado. Esses laços de apoio mútuo não apenas ajudam na sobrevivência diária, mas também oferecem um pouco de humanidade em um ambiente muitas vezes desumanizador.
Durante o período em que esteve encarcerada, Bárbara presenciou a prática de compartilhamento frequente de alimentos e produtos de higiene entre as colegas de cela. Essa troca coletiva assegurava que nenhuma detenta ficasse desamparada, garantindo acesso mínimo à dignidade.
Sonhos e planos que precisaram ser interrompidos
Na época em que foi presa, Barbara estava em um momento crucial da carreira. Com pouco tempo vivendo exclusivamente da dança, a multiartista também almejava a entrada no ensino superior. A escolha entre os cursos de jornalismo e psicologia viria mais à frente, quando finalmente passasse no vestibular. Para o futuro: ser reconhecida na área da dança e conseguir ir para fora do país.
Contudo, esses foram planos e sonhos que se perderam ao longo do tempo em que ficou encarcerada. Como Bárbara descreve, o cárcere aprisiona não apenas o corpo, mas também a mente. Além do isolamento físico, ela enfrentou uma intensa batalha interna de questionamento sobre a própria identidade e o próprio futuro — um processo que perdurou muito mais do que o tempo em que esteve atrás das grades.
“Eu lembro da primeira vez que vi o GIR entrar na cadeia", disse ela, referindo-se ao Grupo de Intervenção Rápida, conhecido como a tropa de choque do sistema prisional, que, normalmente, é restrito às prisões masculinas. Depois de um incidente específico na unidade, o grupo fez uma entrada abrupta e violenta na penitenciária feminina, que resultou na agressão de uma das detentas.
O impacto desse dia foi tão profundo que levou Barbara a adotar um hábito que ela não tinha antes de ser encarcerada: "Foi o dia que eu literalmente achei que ia morrer (...) foi também o dia que comecei a fumar. Eu não fumava antes de estar na prisão, e aí comecei nesse dia lá dentro”.
Marcas resultantes do cárcere
Hoje, enquanto tenta se desvencilhar do vício adquirido no cárcere, a jovem também tenta administrar outras marcas profundas que perduraram ao longo dos últimos quatro anos:
“É como se tivessem roubado uma parte da minha vida que era extremamente importante, sabe? Que era essa parte especificamente da Bárbara sonhadora, da Bárbara que ainda acreditava nas coisas, que as coisas poderiam ser mágicas, né? Então, por exemplo, eu perdi um pouco dessa magia pela vida, né?”
Com um caso amplamente divulgado na mídia, quando já estava em liberdade, a multiartista não teve muito tempo para materializar tudo o que aconteceu. Hoje ela tenta reinventar a própria história a partir de outras vivências. Quando começou com a carreira de dançarina, ela era conhecida como Babiy. Depois da prisão, o vulgo artístico passou a ser atrelado ao seu encarceramento, fazendo com que ela o abandonasse: “Eu parei de ser a Babiy da dança. Eu passei a ser a Babiy, a ex-presidiária”.
Para ela, esse impacto que o cárcere causa na autoestima e no senso de si próprio é uma das partes mais difíceis para os indivíduos inseridos nesse cenário: "A gente sempre sai com várias questões que, às vezes, elas não aparecem de imediato. Às vezes, você sai tão feliz que você não sente aquilo. Mas aquilo pode aparecer, sei lá, três, quatro anos depois, sabe? Pode aparecer dez anos depois”.
Esse processo de reconstrução da autoestima não é apenas uma luta interna. O rótulo permanente que a sociedade impõe àqueles que passaram pelo sistema prisional interfere diretamente no processo de retorno à vida em sociedade. A resistência de empregadores em contratar pessoas com antecedentes criminais, somada ao preconceito de antigos amigos, familiares e até de comunidades inteiras, pode levar a uma solidão devastadora e a uma exclusão social profunda. Essas barreiras se manifestam até na dificuldade de encontrar moradia, já que muitos proprietários se recusam a alugar imóveis para egressos, fechando ainda mais as portas para uma reintegração plena e digna na sociedade.
O impacto na família
Fora das grades, o impacto do encarceramento se estende às famílias. Bárbara viu sua mãe mergulhar em depressão e seu irmão recorrer às drogas, como um reflexo profundo do desgaste emocional e psicológico que a prisão impõe não apenas aos que estão atrás das grades, mas também naqueles que aguardam do lado de fora.
No entanto, Bárbara compreende que o cárcere vai além das grades e celas. Para muitas pessoas negras, como ela e sua família, a experiência do encarceramento começa muito antes de qualquer interação física com o sistema prisional. Ele inicia a partir das desigualdades sociais e econômicas que prendem não só os corpos, mas também os sonhos e futuros de muitos jovens.
Para aqueles que estão expostos às margens, sem condições básicas para sobreviver e sem esperança no futuro, o sentimento de que não há muito a perder pode ser constante. Com poucas oportunidades e sob constante vigilância, presos em um contexto social onde o fracasso parece ser o destino esperado, muitos jovens enfrentam não apenas a pobreza, mas também o preconceito e a falta de chances reais de transformação que facilitam a entrada na criminalidade.
No entanto, as ramificações se estendem para além do indivíduo. O encarceramento de um membro da família pode levar ao colapso de uma estrutura familiar que, talvez, já esteja fragilizada por diversos fatores. Assim, em muitos casos, o encarceramento perpetua-se de geração em geração, aprisionando famílias inteiras em um ciclo de desigualdade.
Nesse contexto, o cárcere então, acaba sendo mais do que uma punição. Ela serve como uma forma de manter certos grupos de pessoas sempre à margem da sociedade, sem acesso a direitos e oportunidades. A luta contra o encarceramento massivo é, assim, uma luta por justiça social e a libertação de comunidades inteiras das correntes invisíveis que as restringem.
Da própria história, nasce um movimento de mudança
Seis meses após recuperar sua liberdade, Bárbara deu vida ao projeto Vidas Carcerárias Importam (VCI). O projeto nasceu durante o auge da pandemia como uma forma de levar mais dignidade aos indivíduos encarcerados, em um momento em que as restrições se tornaram ainda mais severas.
Em 25 de março de 2020, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo impôs uma nova regra que proibia a entrega física dos "jumbos" — pacotes enviados por familiares de detentos com itens essenciais, como higiene e alimentação. Com a nova medida, esses itens precisavam ser enviados pelos Correios, seguindo especificações rigorosas que aumentavam drasticamente os custos de envio.
A medida afetou, especialmente, os familiares dos detentos que já viviam em condições de vulnerabilidade, multiplicando os custos por até quatro vezes. Naquela mesma semana, com a perspectiva de arrecadar recursos necessários para montar os jumbos e fornecer assistência direta a essas famílias, o VCI iniciou e manteve seus trabalhos durante dois anos. Entretanto, desde 2022, o projeto expandiu suas ações para incluir rodas de conversa e produção de conteúdo digital para falar sobre sistema carcerário, arte e cultura.
Em abril deste ano, o VCI realizou a primeira formação no Bloco do Beco, no Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo. Com o objetivo de quebrar os tabus em torno da temática do cárcere, o projeto levantou reflexões sobre a experiência de pessoas da comunidade LGBTQIAP+, os desafios das mulheres e das mães presas e as dificuldades para conseguir trabalho depois de passar pelo sistema. O projeto também organizou oficinas que uniram corpo e música, além de eventos culturais.
Bárbara, hoje uma voz ativa na luta pelo desencarceramento, ressalta a importância vital de falar sobre as realidades do cárcere, especialmente, nas comunidades periféricas que mais sofrem com essas condições: “Quanto mais a gente olhar para o cárcere como um tabu, menos a gente vai conseguir resolver (...) então, o nosso foco é de fato levar essa disseminação de informação.”
Para quem deseja se aprofundar e contribuir com as iniciativas do VCI, as redes sociais do projeto oferecem atualizações contínuas e informações sobre como ajudar.
Conheça o VCI:
Instagram: @projetovci

A história de Bárbara Querino expõe o impacto profundo do racismo no sistema prisional e a realidade de inúmeras prisões injustas no país. E traz outra reflexão: se o cárcere já é uma experiência dura para homens e mulheres, o que dizer da realidade para gestantes, puérperas e bebês que nascem nesse contexto? Na próxima parte, mergulhe ainda mais na realidade das mulheres encarceradas e nos desafios ainda mais cruéis que enfrentam diariamente, invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado.