

Reinventar para libertar
APAC: um método alternativo para repensar a questão prisional no Brasil
Com um pequeno rádio em mãos, dois jovens se posicionavam nos portões de entrada da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). Eram nove horas de uma manhã iluminada pelo sol, e do outro lado da rodovia, uma casa reformada recentemente servia como ponto comercial, vendendo móveis, artesanatos e lanches. Essa cena simples já indica uma distinção fundamental no modelo operacional das APACs: a ausência de seguranças armados e de altos muros com arames farpados transmite uma abordagem de segurança baseada na confiança e na autonomia dos recuperandos.
O método das APACs, sustentado por princípios de respeito, trabalho e espiritualidade, surgiu como uma alternativa ao sistema prisional tradicional e hoje é uma referência mundial em reintegração de pessoas privadas de liberdade. Embora ainda restrito a poucos estados no Brasil, esse modelo tem demonstrado resultados expressivos, com taxas de reincidência significativamente mais baixas e custos de manutenção menores em relação às prisões convencionais. Atualmente, há 69 unidades no país, a maioria em Minas Gerais.

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ) E FBAC.
Desconstruir para reconstruir: é possível recuperar?
A história da APAC começou em 1972, em São José dos Campos (SP), quando o jornalista e advogado Mario Ottoboni reuniu voluntários cristãos para evangelizar e prestar apoio aos presos. Movidos pelo desejo de construir algo distinto das prisões comuns, fundaram uma organização dedicada à ressocialização e recuperação dos internos em um ambiente de apoio e respeito. Em São João del-Rei, a trajetória da APAC teve início em 2007 com a abertura da unidade masculina, e, em 2011, a ala feminina começou a operar.
Desde então, dois conceitos geralmente distantes e desassociados quando pensamos no complexo do encarceramento, passaram a definir bem a essência da APAC: dignidade e valorização da vida. Essas palavras sintetizam o trabalho desenvolvido pela instituição, que se baseia em um processo contínuo de desconstrução para possibilitar a reconstrução. A APAC rompe com as estruturas tradicionais do sistema prisional, substituindo práticas punitivas por um modelo focado na humanização e na ressocialização. Nesse contexto, os internos deixam de ser chamados de "presos" ou "detentos" e passam a ser reconhecidos como "recuperandos", um termo que reflete a esperança e o propósito de transformação que sustentam a metodologia.
Segundo o dicionário, "recuperar" significa restabelecer, restaurar algo ao seu estado original, ou reaver aquilo que estava perdido ou deteriorado. Assim, "recuperando" traduz a ideia de recuperação em andamento, um processo ativo que ocorre no presente. É exatamente essa perspectiva que guia o trabalho das APACs, partindo da crença de que aqueles que chegam à instituição estão em um processo de reconstrução (reconstrução do seu lugar na sociedade, da sua dignidade e da possibilidade de um novo começo). Essa visão fundamenta-se na convicção de que todos possuem o potencial para se reintegrar, superar os erros do passado e construir um futuro diferente. No entanto, essa transformação exige um compromisso profundo e uma responsabilização pessoal pelas próprias ações e decisões, mas onde a mudança é reconhecida como possível.
Esse enfoque contrasta profundamente com a lógica punitiva do sistema prisional convencional, que frequentemente desumaniza e marginaliza. Para as APACs, a pena não deve ser apenas uma forma de punição, mas também uma ferramenta para ressocialização. Assim, o encarceramento cumpre um papel duplo: servir à justiça e preparar o indivíduo para uma reintegração digna e efetiva na sociedade.
“(...) A principal diferença (entre a APAC e o sistema convencional) é justamente o objetivo a que se propõe. O nosso objetivo é para além de garantir de fato esse cumprimento de pena, com os direitos, com tudo, é dar um significado também para esse cumprimento de pena (...) Aqui em SJDR, algumas pessoas tem muito a ideia de que a APAC é um “hotel de bandido”. O nosso objetivo é oferecer, muitas vezes, outras possibilidades, outras visões, inclusive.”
-Camila Kersul, psicóloga da APAC São João del-Rei
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Fachada da APAC São João del-Rei.
O processo de ressocialização
Autonomia, responsabilidade, disciplina e organização
Nas APACs, cada indivíduo cumprindo pena desempenha funções, desde a limpeza e manutenção até a produção de artesanatos, móveis e alimentos, como os itens vendidos no comércio mencionado no início. Muitos deles, adquirem novas habilidades durante o tempo na instituição, enquanto outros têm a oportunidade de aperfeiçoar habilidades prévias e de transmitir seus conhecimentos aos demais. Além do impacto social, essas atividades também fortalecem a sustentabilidade financeira da instituição, que utiliza os recursos gerados para se manter. A APAC ainda conta com trabalhos voluntários e reduz despesas significativas, como os gastos com segurança armada e os custos decorrentes da reincidência criminal a longo prazo.
A autonomia, outro fator importante para o método APAC, é visível já na recepção dos visitantes, onde recuperandos realizam a identificação e o controle de entrada. Um desses jovens, com cabelos e barba bem cuidados, usa um crachá com seu próprio nome, um detalhe significativo para a APAC, onde o resgate da identidade é um valor essencial. Camila explica que o uso do crachá com o nome é uma forma de devolver a dignidade, diferenciando-os dos apelidos do "mundo do crime":
"Temos hoje várias regras, uma das regras é: todos precisam estar com crachá, com o nome deles, porque eles são chamados muito por apelido na vida do crime. Uma vez que nosso objetivo é resgatar o homem, a gente tem que resgatar a história. Então todos eles vão estar com o nome deles, com o nome dos pais, data de nascimento e tudo - com a ideia de: você tem nome".
-Camila Kersul, psicóloga da APAC São João del-Rei
Ter um nome, resgatar a dignidade e receber um tratamento humano, com direito a uma alimentação adequada e a condições de higiene no sentido mais amplo, são os aspectos que mais diferenciam a APAC dos presídios, segundo um dos recuperandos. Ele relata que, durante os primeiros anos de sua pena no Presídio Regional do Mambengo, em São João del-Rei, era comum receber refeições estragadas, e, mesmo assim, não ter outra alternativa senão consumi-las.
O espaço físico da APAC também reflete essa filosofia humanizadora. Os dormitórios, limpos e organizados, substituem as celas superlotadas dos presídios convencionais e são equipados com beliches e banheiros. Um aspecto marcante é que esses espaços permanecem vazios durante o dia, já que os recuperandos do regime fechado seguem uma rotina disciplinada de atividades de laborterapia – uma ferramenta central na missão da APAC de promover a reintegração social por meio de ocupações produtivas. Na quadra poliesportiva, por exemplo, artesãos se dedicam à confecção de peças de artesanato e à costura de bolas, desenvolvendo habilidades práticas que poderão ser aplicadas em suas vidas após a liberdade.
A instituição também tem como ponto central o resgate da autoestima e a autovalorização, oferecendo serviços de barbearia realizados pelos próprios recuperandos, para que possam cuidar da própria imagem e resgatar a dignidade perdida ao longo dos anos. Essa rotina cuidadosamente planejada visa introduzir disciplina e ordem, elementos, muitas vezes, ausentes na vida dos recuperandos antes de sua chegada à APAC. "Eles estão acostumados com uma vida desregrada. Aqui, precisam acordar cedo, seguir uma rotina, organizar seu tempo", detalha Camila.
Cada recuperando é responsável por suas obrigações diárias, como manter a limpeza dos dormitórios e cumprir os horários para alimentação e atividades educacionais. Essas tarefas são coordenadas pelo Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS), formado por 5% a 10% dos recuperandos, com o objetivo de promover um senso de responsabilidade e respeito coletivo. Para se ter noção do impacto da iniciativa, cerca de 80% da disciplina do regime fechado é gerida por eles. Isso inclui garantir o uso dos crachás, a realização das tarefas diárias, como limpeza e faxina, e o cumprimento rigoroso dos horários estabelecidos.
Esse modelo de autogestão, no qual os próprios recuperandos se ouvem e se respeitam, desempenha um papel crucial na desconstrução de antigos padrões de comportamento. Essa transformação começa já na chegada à APAC, quando as algemas são retiradas e uma nova dinâmica estabelecida.
Ensino, trabalho e atividades nas APACs
Embora o trabalho e o estudo sozinhos não sejam os responsáveis pelas transformações, mas sim o contexto em que estão inseridos e sua junção com os outros onze elementos da filosofia APAC, o trabalho exerce um grande papel na vida dos recuperandos. Para aqueles que já concluíram o ensino básico, a APAC oferece parcerias com instituições como o SENAC e o SENAR, permitindo o acesso a cursos profissionalizantes.
"Nosso objetivo é que eles não parem de estudar. Já tivemos casos de recuperandos que receberam autorização para frequentar a faculdade, como um que passou para Engenharia Elétrica. Mas preferimos cursos à distância por serem mais viáveis para a maioria", concluiu Camila.
Até janeiro de 2024, a APAC São Joanense contava com dez oficinas em pleno funcionamento, abrangendo atividades como artefatos de cimento, marcenaria, padaria, horta e suinocultura. Grande parte dessas atividades ocorre no andar superior da instituição, onde um verdadeiro mosaico de ofícios se desenha. De um lado, um jovem opera uma máquina de costura. Os movimentos precisos das mãos acompanhados pelo som característico preenche o ambiente. À medida que o tecido ganha forma, parece que sua própria história vai sendo tecida, agora com uma narrativa renovada. Do outro, a confecção de tapetes, itens de artesanato e a produção de pipas dão vida a outro canto do espaço.
No lado externo, outras iniciativas, como marcenaria, suinocultura e serralheria, também estão em pleno andamento. O diferencial, porém, está na constituição do ambiente. Essas atividades ocorrem ao ar livre, em meio à natureza, com o verde das árvores e a paisagem ao redor criando um cenário único. A vista ampla e os espaços abertos transmitem uma sensação de liberdade que contrasta radicalmente com a ideia de encarceramento. É um ambiente que, muitas vezes, confunde tanto os visitantes quanto os próprios recuperandos, pela tranquilidade e beleza que sugerem algo distante da realidade prisional convencional.

Fotos / reprodução: Jornal das lajes
A suinocultura, localizada em um espaço mais distante da estrutura principal, proporciona uma visão ampla e tranquila, marcada pelo verde das árvores e o céu aberto que envolve o ambiente. Ao sair desse local, a paisagem serena parece carregar um simbolismo quase contraditório para um espaço associado ao sistema prisional. Porém, no horizonte, algo interrompe essa calmaria: uma construção de concreto em meio ao nada. É o Presídio Regional do Mambengo, o mesmo que, por anos, abrigou muitos dos recuperandos antes de chegarem à APAC. Sua presença ali, visível a todos, é um lembrete físico e imponente do que significa estar confinado em um sistema que frequentemente desumaniza e limita.
Essa visão coloca em superfície a essência da APAC e a ruptura que ela representa. Enquanto o presídio convencional é o retrato do encarceramento sem propósito além da punição, a APAC propõe uma alternativa focada em dignidade, trabalho, educação e responsabilização. Ela não apaga os erros do passado, mas oferece ferramentas para que os recuperandos enxerguem possibilidades no futuro. É um modelo que convida à reflexão sobre o que realmente significa justiça e como ela pode ser transformadora.
A APAC não é perfeita, nem possui garantias absolutas de sucesso, mas a construção de algo diferente já é um passo crucial. Cada trabalho realizado, cada oficina e cada atividade dentro desse espaço carrega uma mensagem: ninguém deve ser definido apenas pelos seus erros. Na APAC, o que se busca não é simplesmente recuperar um indivíduo para a sociedade, mas reconstruir histórias, oferecendo caminhos para que novos capítulos sejam escritos.
A visão do presídio ao longe é um lembrete contundente de que o encarceramento tradicional ainda é a realidade para a maioria. Mas, ao mesmo tempo, reforça a importância de iniciativas como a APAC. É uma aposta na possibilidade de transformação, na valorização da vida e na crença de que, ao olhar para o outro com humanidade, podemos construir um sistema que não apenas pune, mas que também resgata.
Quem permanece às margens da morte quando ignoramos a problemática carcerária? E que ferramentas de transformação social oferecemos a essas pessoas quando as submetemos a condições desumanas como as citadas ao longo das reportagens? Talvez, ao encarar o sistema carcerário como ele realmente é, possamos começar a reverter o ciclo que perpetua a exclusão, a violência e a invisibilidade. A pergunta que fica é: estamos dispostos a enxergá-lo?




